Arquitetura: “Por que estamos tão insatisfeitos com a profissão?”

Postado em 11 de fevereiro de 2021 por

A arquitetura traz em si um forte arquétipo, no qual o propósito parece ser maior do que ela mesma. Floreada por uma imagem poética, seus profissionais refletem o símbolo de grandes inventores, que concebem o espaço e fundam novas formas de viver na sociedade. Sem dúvidas um ofício sedutor e que, certamente, influencia o cotidiano de qualquer cultura. No entanto, é cada vez mais marcada por ilusões e desapontamentos, num mercado que parece paulatinamente se distanciar da teoria e se fechar nos nichos que ele mesmo cria. Sob uma competição cada vez maior, sem resultar numa qualidade significativa do que é produzido, trabalhar com arquitetura se reflete gradualmente em frustrações e insegurança.

Perguntamos ao nosso público qual seria o motivo da arquitetura se tornar uma profissão tão ingrata e o que poderia ser feito para introduzir novas questões – e soluções – para o campo. Recebemos mais de 160 respostas, as quais compilamos e exploramos os principais pontos levantados: o mercado de trabalho, a (falsa) imagem da profissão, a falta de reconhecimento, a ausência de fiscalizações e uma educação profissional falha. Veja todos, a seguir.

O mercado de trabalho: da desvalorização ao assédio

Em sua grande maioria, as insatisfações que rondam profissionais de arquitetura estão atreladas ao mercado de trabalho e podem ser resumidas em dois principais tópicos: a falta de respeito com o profissional e a desvalorização financeira.

Desde o ano passado, a conta @xposedarquitetos_br se dedica a expor casos de pessoas que sofreram com sobrecarga de trabalho, pressão psicológica, remuneração abaixo do piso ou da categoria, demissão sem justa causa e qualquer outro episódio de abuso. Identificar essas ocorrências em nossas carreiras, ou conhecer pessoas que já passaram por elas, é uma tarefa tão fácil que pode-se dizer que este cenário passou a ser normalizado pela classe.

Torna-se fundamental quebrar o ciclo no qual estamos inseridos. Hoje, se você não tem uma grande rede de contatos e grandes fundos – características que normalmente andam juntas – para abrir um escritório e iniciar sua própria carreira, ao buscar por trabalho você provavelmente enfrentará situações de humilhação que podem se agravar em diferentes distúrbios psicológicos.

Relatos como a falta de respeito entre a própria equipe, condições de trabalho decadentes, falta de oportunidades ou criação de planos de carreira dentro do próprio escritório, aliados a uma grande quantidade de profissionais no mercado – o que torna o funcionário cada vez mais substituível -, são responsáveis por uma grande instabilidade e consequente desvalorização do trabalho executado. Fatores que resultam em constantes apontamentos sobre horas extras de trabalho não remuneradas – incluindo fins de semana -, estágios que exigem um currículo que nem mesmo o chefe possui e salários muito abaixo do piso.

Como se não bastassem esses desafios para conseguir trabalhar, vale ressaltar que mulheres e pessoas negras passam por questões ainda mais complexas, já que lidam com casos de assédios, machismo e racismo no ambiente de trabalho.

Se hoje este cenário é recorrente para os profissionais da área, no qual poucos escritórios que cumprem o direito básico de seus funcionários são vistos como exceção, é necessário pensar em como reverter a situação. A sugestão dada pelos leitores apela por uma maior fiscalização em toda a cadeia profissional, encoraja pessoas a denunciarem os abusos sofridos para sindicatos e conselhos responsáveis, sem esquecer a necessidade de criar mobilizações que avaliem e participem ativamente dos órgãos representativos para garantir a eficácia destes a fim de tornar real uma possível mudança.

Imagem da profissão vs Reconhecimento

Glamour, luxo, tendência e riqueza são algumas das palavras que muitas pessoas associam à arquitetura. Inclusive, parte dos profissionais trabalham exatamente com elas e seria de grande ingenuidade negar essas conexões. No entanto, carregá-las como principais símbolos no imaginário coletivo que envolve a profissão levam esta a um lugar supérfluo e completamente descartável para a sociedade. Principalmente num país tão desigual, onde a arquitetura seria essencial em seu papel de trazer conforto e qualidade de vida às pessoas nos âmbitos privado e público.

“A profissão e o profissional não conseguem dialogar com a população, existe um mito na figura do arquiteto que cria uma barreira difícil de transpor, muitas das vezes por conta da falta de educação básica da população e falta de sabedoria dos profissionais. A falta de um diálogo e entendimento básico entre a população e os arquitetos gera essa anomalia, onde a falta da assessoria técnica dá espaço à construções e investimentos em edificações sem qualidade para o usuário.” – Rangel Brandão, arquiteto de Goiânia (GO).

Isso nos leva a pensar: a população descarta os arquitetos por não conhecerem seus serviços primordiais ou os arquitetos não servem à população por não terem oportunidade de demonstrar sua importância?

Seja por acreditar que contratar um arquiteto é um serviço caro – como na maioria das vezes é, ainda mais se pensarmos o quadro econômico da grande maioria das famílias brasileiras -, ou pela falta de reconhecimento dos próprios governos – que entre suas ações raramente incentivam concursos públicos de qualidade, parecem não facilitar o acesso à assessoria técnica e tampouco discutem projetos de habitação social e questões urbanas com a propriedade necessária -, prevalece a reprodução de um pensamento hegemônico sobre o que já está construído, deixando arquitetos e arquitetas cada vez mais longe de seus ideais de carreira e frustrados ao não colocarem em prática seus conhecimentos.

“Pessoas próximas sempre dizem a mim que sonham em ganhar na mega-sena para me contratar para fazer um projeto. Eu não escuto esse tipo de comentário para outros que são da área de engenharia, medicina ou direito. Bate uma frustração escutar que meu trabalho só é útil em um evento impossível.” – Gabriela Barbosa, arquiteta em Caxias (Maranhão). 

Do outro lado deste espectro, estão as pessoas que podem até apreciar a arquitetura, mas reduzem todo o estudo do profissional a um lugar sem valor. Esquecem que há um investimento enorme de tempo (e dinheiro) com o intuito de acumular o conhecimento necessário para sugerir propostas para o espaço que brindem noções não meramente estéticas, mas também de conforto, que implicam diretamente na sensação espacial e no comportamento humano, fatores que vão além de apenas um gosto pessoal.

“As pessoas geralmente não valorizam a criação, ouvimos sempre: me dá uma ideia? Acredito que o problema principal é o reconhecimento que não existe.” – Juliana, arquiteta em Ribeirão Preto.

Como uma possível solução, muitas respostas sugerem que haja campanhas de educação sobre a importância do conhecimento arquitetônico para a sociedade ou que sejam didáticas a ponto de mostrar como a qualidade do espaço afeta o cotidiano de cada pessoa.

Além disso, o próprio profissional deve buscar por novas formas de atuação e inserção social de seus conhecimentos e técnicas. Através de bons exemplos e na transformação da experiência espacial de cada cidadão, trazer um novo valor e reconhecimento para a profissão provavelmente se tornará algo mais genuíno.

A ausência de fiscalização: quem ganha com isso?

Em 24% das respostas recebidas a falta de fiscalização ou o desejo dela foram manifestados.

A ausência dos conselhos ou sindicatos no momento de supervisionar e zelar pelo profissional de arquitetura é comentado como um dos principais motivos pelas irregularidades em escritórios, baixos salários, valores cobrados por serviços abaixo do mercado (que desvalorizam todo o setor) e até mesmo o polêmico caso das comissões de Reserva Técnica (RT) – que seria proibida de acordo com a Lei 12.378/2010, “que regula o exercício da Arquitetura e Urbanismo no Brasil e caracteriza como infração disciplinar o ato de ‘locupletar-se ilicitamente, por qualquer meio, às custas de cliente, diretamente ou por intermédio de terceiros’”.

Todos esses casos caracterizam atitudes antiéticas e influenciam negativamente a cadeia do serviço prestado por arquitetos e arquitetas: do cliente ao fornecedor. Exigir uma fiscalização é direito e dever de todos profissionais para buscar por um cenário mais justo dentro do mercado e que, principalmente, valorize a própria classe como um todo.

As lacunas existentes na educação

Quanto à graduação de Arquitetura e Urbanismo, dois principais fatores foram apontados como possível desapontamento na profissão.

Primeiramente, o despreparo perante o mercado. Muitos arquitetos não se veem preparados para gerir seus negócios, coordenar equipes, administrar suas finanças e acreditam que isso poderia ser abordado em algum momento de sua graduação, não sendo necessário aprender com os (caros) erros em sua trajetória profissional ou em cursos de pós-graduação.

“Faculdades de arquitetura precisam sim, ensinar o lado ‘lúdico’ da profissão: mas não podem esquecer que arquitetura é uma profissão. É um negócio, é um emprego. Arquitetura é linda, é uma arte; mas vontade e amor não transformam um diploma em um escritório de arquitetura.” – Angelo, arquiteto de Nova Trento (SC).

Enfatizamos que se faz fundamental abordar os mais distintos conceitos e teorias durante a graduação de Arquitetura e Urbanismo, pois este é um dos únicos momentos nos quais é possível se dedicar a investigar distintas visões para conceber uma base ideológica que servirá como fundação e muito provavelmente permeará toda a carreira dos futuros profissionais. É um momento aberto às mais distintas experimentações, que extrapola a rigidez de algumas normas e condicionantes da vida real, e deve ser aproveitado como tal. No entanto, a educação atual possui lacunas evidentes não apenas em relação ao mercado, mas também a outras formas de pensar e fazer a arquitetura que não sigam os cânones europeus e modernos. Como resultado, formamos profissionais que não se sentem completamente aptos a gerir um escritório e com uma visão colonizadora, que dificilmente possibilitará uma leitura real dos problemas apresentados por cidades brasileiras – uma vez que não conseguem se desvincular de um pensamento hegemônico ao projetar para uma população diversa.

O segundo ponto fala sobre a quantidade de escolas que têm surgido e como não existe nenhuma forma de controle sobre a formação que elas oferecem. Isso coloca uma quantidade imensa de novos profissionais no mercado que nem sempre estão em condições de enfrentá-lo. Em hipóteses próprias, os leitores que se dedicam a este tema falam sobre como esse despreparo pode difamar a imagem dos profissionais de arquitetura e alguns sugerem que deveria haver uma prova semelhante à realizada pela OAB para que se possa exercer a profissão.

Contudo, nos perguntamos se numa profissão com um leque tão grande de possibilidades, uma prova seria uma forma justa de avaliar a competência de algum profissional. De qualquer forma, há muito a ser discutido e uma necessidade imensa de atualização e cuidado com o ensino de Arquitetura e Urbanismo.

Como buscar por um futuro distinto?

“Falta pensamento coletivo. Na minha universidade, pelo menos, o ensino é bastante contaminado pelo ensino moderno de arquitetura. O arquiteto formado acaba sendo extremamente individualista, muitas vezes egocêntrico e com olhar voltado para uma realidade à qual nosso país, o Brasil, não pertence. Acredito que o ensino deva olhar muito mais profundamente à realidade diversa do território brasileiro, aos problemas e aos contextos daqui, sem, entretanto, renegar os exemplos estrangeiros. Além disso, o arquiteto sozinho jamais conseguirá enxergar por completo essa realidade, daí a necessidade de torná-lo um agente da coletividade, de modo a enxergar não somente a visão de um cliente, mas a visão de um contexto muito mais complexo. Antes de responsabilizar a sociedade pela desvalorização do nosso trabalho, deveríamos olhar para nós mesmos e nos perguntar: nosso trabalho reflete as necessidades e os anseios da sociedade num geral, ou estamos nos tornando cada vez mais restritos a certos nichos de mercado e deixando quem realmente precisa do nosso trabalho de lado?” – Henrique Lima, estudante de arquitetura em São Paulo (SP).

Questionamentos como os colocados acima são fundamentais para sair de uma posição passiva para se colocar como possível agente nas mudanças que esperamos.

Sabemos o quão cruel o mercado pode ser, ainda mais quando necessitamos de uma remuneração básica para viver. No entanto, se possível, criar tempo para se dedicar para possíveis mudanças no campo como todo, questionar a sua posição nessa cadeia, o modo como você trata a sua equipe e colaboradores (do pedreiro ao fornecedor), buscar outros conhecimentos, denunciar abusos e respeitar a própria integridade pode ser um passo importante para iniciar um movimento maior.

A arquitetura é uma profissão que tem como maior recurso a capacidade de planejar e projetar. Se conseguirmos aplicar um mínimo desse ensinamento para nós como indivíduos e aos poucos passar isso para o coletivo, certamente será possível encontrar outros caminhos que retomem os sonhos e os primeiros desejos que levaram à profissão. Se a trajetória não é fácil que, ao menos, deixe de ser ingrata.

Fonte: ArchDaily