A impotência da tecnologia diante da mudança climática

Postado em 22 de novembro de 2021 por

Munido de dados, um grupo de cientistas alerta: toda a redução das emissões de CO² alcançada pela técnica, nas últimas décadas, foi pouca — diante do aumento dramático do consumismo. Para salvar o planeta, exigem-se novas lógicas sociais

O mundo segue uma rota ambientalmente insustentável. Isto é inquestionável. O “Aviso dos cientistas sobre a afluência” (WIEDMANN, 2020), publicado na Revista Nature Communications (19/07/2020) alerta para os perigos do sobreconsumo (afluência) para o futuro do planeta. O texto diz que por mais de meio século, o crescimento mundial da afluência (riqueza) aumentou continuamente o uso de recursos e as emissões de poluentes muito mais rapidamente do que foram reduzidas por meio de melhores tecnologias.

As parcelas mais abastadas do mundo são responsáveis ​​pela maioria dos impactos ambientais e devem contribuir para qualquer solução futura para atingir condições ambientais mais seguras. O documento resume diversas evidências e possíveis abordagens de solução e diz que qualquer transição para a sustentabilidade só pode ser eficaz se mudanças de longo alcance no estilo de vida complementarem os avanços tecnológicos. Mas chama a atenção para o fato de que as sociedades, economias e culturas existentes incitam à expansão do consumo e o imperativo estrutural para o crescimento em economias competitivas de mercado inibindo a mudança social necessária.

Evidentemente existe uma indução de cima para baixo para propagar um estilo de vida afluente e baseado em um consumo conspícuo que é estimulado via efeito comparativo. Porém, o documento dá pouco espaço para discutir o desejo das pessoas em geral por um estilo de vida confortável e sustentado em apetrechos da modernidade. Ou seja, existe o lado do interesse da máquina insana e insone de acumulação de capital, mas também existe o lado individual dos 7 pecados capitais: Soberba, Avareza, Luxúria, Inveja, Gula, Ira e Preguiça.

O “Aviso dos cientistas sobre a afluência” foca os problemas ambientais no aumento do consumo e minimiza a questão populacional. Porém, não existe consumo sem população e nem população sem consumo. Simplesmente propor a redução do consumo das parcelas ricas da população mundial sem diminuir o ritmo do crescimento demográfico global seria uma “política Robin Hood” que poderia reduzir os graus mais extremos de pobreza, mas não resolveria o déficit ambiental. Simplesmente distribuir riqueza sem tocar no crescimento populacional é o mesmo diminuir a renda per capita global.

O texto de Wiedmann et. al. (2020) considera que “o consumo é de longe o determinante mais forte dos impactos globais, superando outros fatores socioeconômicos-demográficos, como idade, tamanho da família, qualificação ou estrutura da moradia”. Não há dúvida sobre isto. Porém, os autores usam este argumento para dizer que os impactos populacionais sobre o meio ambiente são secundários. Todavia, interditar o debate não resolve o problema.

Os autores concordam que os principais fatores de impacto global são as mudanças tecnológicas e o consumo per capita. Enquanto o primeiro atua como um retardador mais ou menos forte, o segundo é um forte acelerador do impacto ambiental global. Mas, em geral, o crescimento do consumo (e em menor proporção da população) supera os efeitos benéficos das mudanças de tecnologia nas últimas décadas. A Figura abaixo mostra o exemplo de mudanças na pegada de material global e nas emissões de gases de efeito estufa em comparação com o PIB ao longo do tempo. A evidência esmagadora dos estudos de decomposição é que, globalmente, o crescente consumo diminuiu ou cancelou quaisquer ganhos provocados por mudanças tecnológicas destinadas a reduzir o impacto ambiental

Além de tudo, há um crescimento da classe média mundial. Isso significa que, se o consumo da classe média não for abordado em esforços futuros para mitigar o impacto ambiental, as soluções tecnológicas enfrentarão uma batalha árdua, na medida em que não só precisam gerar reduções de impacto, mas também precisam combater os efeitos do consumo e da riqueza crescentes. O texto argumenta que os formuladores de políticas precisam reconhecer o fato de que a solução do colapso ambiental pode exigir uma redução direta da produção e consumo econômicos nos países mais ricos. Mas não fala nada do crescimento populacional nos países pobres e do crescimento migração Sul-Norte.

Em relação às disparidades internacionais, o texto mostra que a renda está fortemente ligada ao consumo, e o consumo, por sua vez, ao impacto ambiental. Assim, pode-se esperar que as desigualdades de renda existentes se traduzam em desigualdades de impacto igualmente significativas. O texto mostra que os ricos emitem mais CO2 do que os pobres e que o uso de materiais são globalmente mais desigualmente distribuídos quando contabilizados como pegadas. Ao contrário das alocações territoriais, as pegadas atribuem encargos ambientais ao consumidor final, não importa onde a pressão ambiental inicial tenha ocorrido. Assim, o comércio internacional acentua as desigualdades nas emissões de CO2.

Como o nível de consumo determina os impactos totais, a riqueza precisa ser tratada pela redução do consumo, e não apenas pela maquiagem verde. Isso implica reduzir os gastos e a riqueza ao longo de ‘corredores de consumo sustentáveis’, ou seja, padrões de consumo mínimo e máximo.

O texto faz uma crítica correta aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente ao objetivo 8 que prega um crescimento econômico continuado e faz um elogio às abordagens sustentadas por bem-estar social multidimensional e metas ambientais, como a “Donut Economics” de Kate Raworth, que podem inspirar mudanças transformadoras no contexto das soluções mais reformistas.

Um segundo grupo, mais radical, argumenta que a transformação socioecológica necessária implicará necessariamente uma mudança além do capitalismo e/ou dos atuais estados centralizados. Embora compreendendo considerável heterogeneidade, pode ser dividido em abordagens ecossocialistas, encarando o Estado democrático como um meio importante para alcançar a transformação sócio-ecológica e abordagens eco-anarquistas, visando a democracia participativa sem Estado, minimizando hierarquias.

Em síntese, o texto reafirma que o bem-estar humano e planetário a longo prazo não será alcançado no Antropoceno se o consumo excessivo das parcelas afluentes da população continuar estimulando os sistemas econômicos que exploram a natureza e os seres humanos, pois, os estilos de vida dos ricos do mundo determinam e geram o maior impacto ambiental e social global. Nesse contexto, a revolução digital – e mais amplamente a Quarta Revolução Industrial, com inovações convergentes e revolucionárias em tecnologia digital, inteligência artificial, Internet das Coisas, impressão 3D, biotecnologia e nanotecnologia pode trazer ganhos exponenciais de eficiência. Embora a digitalização já seja uma força motriz essencial na transformação da sociedade, até agora levou a mais consumo e desigualdade e permaneceu associada ao uso indireto de energia e materiais, sustentando, portanto, padrões de crescimento com uso intensivo de recursos e de gases de efeito estufa no cenário macroeconômico.

O texto afirma que a interface entre estilos de vida materialmente reduzidos e o ambiente social (instituições, valores, normas e governança) precisa de atenção especial. Que circunstâncias permitirão e apoiarão mudanças generalizadas nos estilos de vida? Quais são as barreiras institucionais, culturais e individuais à adoção de mudanças no estilo de vida e como elas podem ser superadas? Qual é o papel dos grupos sociais, organizações e movimentos de baixo para cima? Podemos aprender com as sociedades, por exemplo sociedades indígenas e pré-industriais, que conseguiram viver sem crescimento econômico?

Até agora, os conceitos de estado estacionário, decrescimento ou crescimento não foram praticamente implementados em escalas maiores. Pesquisas sobre a sustentabilidade ambiental e social dessas proposições são necessárias. Pode-se conseguir uma transição para um consumo reduzido e alterado, mantendo ao mesmo tempo a estabilidade econômica e social? Quais são as implicações no trabalho, emprego e crescimento populacional? Como a segurança social pode ser mantida e a igualdade aumentada? Quais são as consequências para o comércio e para o sul global em particular?

O texto finaliza com várias propostas. Primeiro, substituir o PIB como uma medida de prosperidade por uma infinidade de indicadores alternativos e independentes do crescimento. Segundo, capacitar as pessoas e fortalecer a participação em processos democráticos e permitir uma autogovernança local mais forte. Terceiro, fortalecer a igualdade e a redistribuição por meio de políticas tributárias adequadas, renda básica e garantias de emprego, estabelecendo níveis máximos de renda, expandindo os serviços públicos e revertendo as reformas neoliberais. Quarto, a transformação dos sistemas econômicos pode ser apoiada por modelos de negócios inovadores que incentivam o compartilhamento e a economia de economias, com base na cooperação, comunidades e economias localizadas, em vez da competição. É necessária pesquisa para criar, avaliar e revisar instrumentos políticos adequados. E, finalmente, a capacitação, a transferência de conhecimento e a educação – incluindo mídia e publicidade – precisam ser adaptadas para apoiar projetos locais de suficiência e iniciativas cidadãs.

Não dá para ignorar as questões demográficas e o fato de que o consumo multiplicado por um número crescente de pessoas aumenta o impacto global sobre a degradação ecológica. Foi exatamente esta mensagem que 11 mil cientistas divulgaram ano passado no documento “World Scientists’ Warning of a Climate Emergency” (BioScience, 05/11/2019) onde afirmam: “O crescimento econômico e populacional está entre os mais importantes fatores do aumento das emissões de CO2 em decorrência da combustão de combustíveis fósseis”(RIPPLE, WJ. et. al. 05/11/2019).

O documento dos cientistas diz: “Ainda crescendo em torno de 80 milhões pessoas por ano, ou mais de 200.000 por dia, a população mundial precisa ser estabilizada – e, idealmente, reduzida gradualmente – dentro de uma estrutura que garante a integridade social. Existem políticas comprovadas e eficazes que fortalecem os direitos humanos enquanto diminui as taxas de fecundidade e diminui os impactos do crescimento populacional sobre as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e sobre a perda de biodiversidade. Estas políticas devem tornar os serviços de planejamento familiar disponíveis para todas as pessoas, removendo barreiras ao seu acesso e buscando alcançar equidade total de gênero, inclusive estabelecendo o ensino primário e secundário como uma norma para todas as pessoas, especialmente meninas e mulheres jovens”

Ou seja, o texto afirma que qualquer transição para a sustentabilidade só pode ser eficaz se houver mudanças abrangentes no estilo de vida complementarem aos avanços tecnológicos e que as mudanças devem vir de baixo para cima. Tudo isto ficaria mais viável se os autores assumissem aquilo que disse o grande ambientalista David Attenborough: “Todos os nossos problemas ambientais se tornam mais fáceis de resolver com menos gente e mais difíceis e, em última instância, impossíveis de resolver com cada vez mais pessoas”.

Uma proposta que resolveria o desafio ecossocial seria uma redução do PIB mundial em 0,1% ao ano, acompanhado de uma redução da população global de 0,3% ao ano, o que daria um aumento da renda per capita de 0,2% ao ano. Se junto a isto houver redução do consumo conspícuo, melhor distribuição de renda entre os países e dentro dos países e avanços tecnológicos que promovam o desacoplamento entre produção e o uso intensivo de materiais e energia (transição energética, sociedade da informação, etc.) o mundo poderia reduzir o déficit ambiental e o déficit social ao mesmo tempo. Mas para tanto, a questão demográfica não pode continuar sendo um tabu e o decrescimento demoeconômico deve ser planejado para começar o mais rápido possível.

Fonte: Outras Palavras