Postado em 19 de novembro de 2021 por sn-admin
Algumas soluções encontradas em diferentes regiões no Brasil mostram que é possível minimizar problemas ocasionados em épocas de estiagem
As crises hídricas atingem a atividade econômica, a saúde pública e os ecossistemas. Encontram-se fundamentalmente ligadas à escassez de recursos hídricos, porém suas causas podem ser mais complexas. Avaliando o panorama nacional, existem dois grupos principais de regiões afetadas: as metrópoles com grande densidade populacional, no Sudeste e Centro-Oeste, e o semiárido nordestino.
É na região Nordeste, em especial no Semiárido, que se encontra a principal situação de escassez hídrica do país. Essa região convive historicamente com períodos de seca que geram severos impactos socioeconômicos e ambientais. Somente em 2017, cerca de 38 milhões de pessoas foram afetadas por eventos de secas e estiagens no Brasil, sendo 80% desse total apenas na região Nordeste. Ainda devido às secas, no período de 2003 a 2016, dos 1.794 municípios da região Nordeste, 1.409 (78,5%) decretaram Situação de Emergência ou Estado de Calamidade Pública.
No Ceará, um dos estados mais afetados, os principais fatores que favorecem a ocorrência das secas são: a alta variabilidade espaço-temporal do regime de chuvas, fatores hidrogeológicos e altas taxas de insolação durante o ano. Essas condições são similares ao longo do semiárido e impactam fortemente as reservas de água. Num contexto de mudanças climáticas futuras esses períodos de seca tendem a ser mais severos e frequentes segundo simulações de modelos climáticos globais.
Nas regiões metropolitanas das regiões Sudeste e Centro-Oeste uma série de fatores contribuem para as crises hídricas: o aumento da demanda de água, eventos climáticos extremos, falta ou precariedade de infraestrutura e a grande taxa de poluição de mananciais, cursos d’água, rios, lagos, reservatórios e aquíferos subterrâneos. Por exemplo, entre 2013 e 2015, o Sistema Cantareira, que abastece quase metade da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), a maior aglomeração populacional do Brasil, chegou a 12% do seu volume útil. Com o sistema nessas condições, a RMSP experimentou uma severa crise hídrica. No Centro-Oeste, Brasília também experimentou uma crise desse tipo entre 2016 e 2017. Nesse período, os reservatórios do Descoberto e Santa Maria chegaram, respectivamente, a 5% e 21% dos seus volumes úteis.
Soluções tecnológicas
Apenas em 2018, segundo o Ministério da Integração Nacional, pelo menos 917 municípios brasileiros (16%) apresentaram algum risco relacionado à seca e à falta d’água. Nesse contexto, surge a necessidade, por parte das instituições governamentais e da sociedade em geral, de pensar em soluções ou alternativas para diminuir o risco da ocorrência de crises hídricas no país. Tecnologias e ideias inovadoras se apresentam como possíveis soluções.
De forma a ilustrar a utilização dessas tecnologias serão apresentados alguns casos encontrados no semiárido nordestino e nas regiões metropolitanas. A ilustração terá por base um agrupamento prévio de alguns exemplos de tecnologias que procuram reduzir o risco de crises hídricas utilizadas ou desenvolvidas no mundo.
Tal agrupamento foi baseado na finalidade das tecnologias e sua relação com alguns dos componentes de um sistema de abastecimento de água convencional[1], considerando-se ainda os usos da água e o tratamento de esgoto. Dessa maneira, as categorias propostas foram:
Captação e/ou armazenamento – incluem tecnologias relacionadas com captação e reservatório;
Tratamento – incluem tecnologias relacionadas com o tratamento de água e esgoto;
Monitoramento e gestão – incluem tecnologias relacionadas com o monitoramento da qualidade e quantidade de água em mananciais, estações elevatórias, adutoras e redes de distribuição;
Controle de consumo – incluem tecnologias relacionadas com os usos da água.
O levantamento das informações sobre os exemplos que se apresentam a seguir foi realizado por meio de busca que teve por referência instituições de pesquisa e órgãos governamentais, relacionados à temática da crise hídrica, tais como: Ministério do Meio Ambiente (MMA), Agência Nacional de Águas (ANA), Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (FUNCEME), Universidade Federal do Ceará (UFC), Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), entre outras. Também foram procuradas informações nas apresentações e documentos divulgados no 8° Fórum Mundial da Água (2018).
Semiárido
Diante do quadro de crise hídrica que o semiárido nordestino apresenta, mostram-se exemplos de soluções tecnológicas utilizadas nessa região.
Alguns exemplos de tecnologias para a captação e/ou armazenamento de águas pluviais para o consumo humano e para a irrigação de culturas são aquelas difundidas pelo Programa Água Doce (PAD), coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), desde 2004, prioritariamente no Semiárido. Em 2011, esse programa passou a fazer parte do Programa Água Para Todos (APT), procurando solucionar o problema de acesso à água em comunidades rurais do Semiárido brasileiro. Em especial, o APT implementa:
Cisternas: são reservatórios para a captação de água pluvial e podem ser de dois tipos, de consumo (com capacidade de 16 mil litros destinados ao consumo humano) e de produção (com capacidade variável dependendo das necessidades dos agricultores);
Bacias (ou barragens) subterrâneas: são escavações, até as rochas, de valas, cujas paredes são forradas por lonas de plástico e, a seguir, preenchidas com o solo retirado, de forma a reter as águas pluviais sobre a rocha;
Barreiros (ou pequenas barragens): são pequenas contenções para captação de água da chuva que visam atender à carência de água para produção agrícola e alimentar;
Segundo a análise da efetividade do Água Para Todos (2018)[2], foram instaladas cisternas em 1.158 municípios do Semiárido, o que corresponde a uma cobertura de 91,8% dos municípios da região. No período de 2012 a 2016, mais de 800 mil cisternas foram instaladas.
Devido às condições hidrogeológicas do Semiárido, as águas subterrâneas apresentam condições salobras e salinas. Uma alternativa para melhorar a qualidade dessas águas para o consumo humano é a dessalinização.
O PAD, com auxílio de diversas universidades e instituições, dissemina tecnologias para implementar sistemas de dessalinização. A tecnologia utilizada tem sido a osmose reversa, uma tecnologia de tratamento, amplamente difundida no segmento da dessalinização devido a seu baixo custo em comparação às tecnologias térmicas. A osmose reversa é uma tecnologia de filtração que reverte o processo espontâneo de osmose, em que uma solução se movimenta da concentração mais baixa à mais alta, utilizando excesso de pressão e membranas filtrantes semipermeáveis. Essa tecnologia é similar à utilizada desde 2004 no abastecimento de água no arquipélago de Fernando de Noronha.
No Ceará, 252 sistemas de dessalinização do PAD beneficiam comunidades de 44 cidades, com aproximadamente 120 mil pessoas. Esse número representa quase a metade de todas as plantas implantadas nos dez estados atendidos pelo PAD.
Um exemplo de tecnologia para o monitoramento e gestão é o Monitor de Secas do Nordeste, uma ferramenta que permite a visualização de informações georreferenciadas sobre as secas, posteriormente divulgadas para a população por meio de um aplicativo para smartphones.
O monitor utiliza dados climatológicos e hidrológicos, entre outros, fornecidos por órgãos federais, estaduais e instituições de apoio para a geração de indicadores sobre as secas, posteriormente georreferenciados, fornecendo um acompanhamento regular e periódico da situação da seca no Nordeste, cujos resultados consolidados são divulgados por meio do Mapa do Monitor de Secas.
Mensalmente, informações sobre a situação de secas são disponibilizadas, com indicadores que refletem o curto prazo (últimos 3, 4 e 6 meses) e o longo prazo (últimos 12, 18 e 24 meses), indicando a evolução da seca na região. A Agência Nacional de Águas (ANA) é a instituição central do processo de desenvolvimento da ferramenta, e dentre as instituições parceiras estão o Banco Mundial e a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (FUNCEME).
O Monitor pode ser utilizado por instituições tomadoras de decisão e indivíduos, de modo a fortalecer os mecanismos de monitoramento, previsão e alerta, permitindo tomar ações mais acuradas na gestão de secas, como por exemplo ativar medidas de abastecimento emergencial de água como o uso de carros-pipa.
Um solução no controle de consumo da água na irrigação, adaptada à realidade socioeconômica da região do Semiárido, são os sistemas de tubos gotejadores. O gotejamento nesses sistemas é realizado com uso de emissores artesanais, de fácil construção, a partir de materiais como segmentos de tubos, mangueiras, garrafas PET, entre outros, que visam entregar gotículas de água diretamente ao solo, possibilitando diminuir o consumo de água e aumentar a eficiência da irrigação em algumas culturas.
Destaca-se que existem diferentes adaptações da tecnologia devido às necessidades distintas de vazão de água e do material de construção. Esses tubos gotejadores também fazem parte dos kits (ou sistemas) de irrigação disseminados pelo APT. A EMBRAPA oferece recomendações sobre a construção de sistemas similares com experiências de uso no Semiárido.
Sudeste e Centro-Oeste (Metrópoles)
Considerando o cenário de crise hídrica nas regiões metropolitanas e os problemas a ele associados, destacam-se exemplos de soluções tecnológicas adaptadas ao contexto urbano.
A contaminação de mananciais nas áreas urbanas é comum pelo lançamento de esgoto com pouco ou nenhum tratamento, podendo acarretar na diminuição da qualidade das águas, encarecendo seu tratamento, até inviabilizar o seu uso para o abastecimento. Nesse contexto, destaca-se a importância do tratamento de esgoto.
O Projeto Saneamento Sustentável, da cidade de Petrópolis (RJ), é um caso de tratamento eficiente do esgoto sanitário. O sistema utiliza biodigestores, câmaras sem luz e oxigênio, que usam bactérias naturais (obtidas de restos de matéria vegetal) para digerir a matéria orgânica. Nesse processo de degradação é produzido o Biogás[3], utilizado para a geração de energia elétrica e abastecimento de escolas públicas.
Nesse sistema, também são utilizadas garrafas plásticas no processo de separação de matéria orgânica e água. Esse projeto, além de aumentar os índices de tratamento de esgoto – atualmente 70% do esgoto da cidade é tratado –, oferece educação ambiental e trata o esgoto de comunidades de baixa renda, localizadas em zonas de difícil acesso.
Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, segundo o Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos 2017 realizado pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), as perdas por vazamento[4] em redes de distribuição de água foram ao redor de 34% naquele ano. Nesse cenário, sistemas inteligentes para a detecção de vazamentos são exemplo de tecnologias que ajudam no monitoramento e gestão da água.
Em São Paulo, um sistema utiliza Inteligência Artificial (IA) para classificar informações de possíveis vazamentos em redes de distribuição de água. Através de coletores móveis, como alicates ou braceletes colocados em hidrômetros ou tubulações, captam-se as vibrações características do fluxo pressurizado presente na rede para a produção de informações, posteriormente armazenadas em um banco de dados e, utilizando-se IA, classificadas em vazamento/não-vazamento. Essas informações podem ser visualizadas por um gestor, por meio do acesso a um painel de controle, possibilitando o acompanhamento em tempo real do trabalho de varredura de sons no campo. Com esse sistema, a área de procura de um dano numa rede de distribuição pode ser reduzida em até 99%.
No Brasil, na categoria de monitoramento e gestão, encontra-se também um robô projetado para entrar em dutos de esgoto, água e ar condicionado, com diâmetro de, no mínimo, 300 mm, suportando até 1 bar de pressão. O robô consiste em um carro mecânico dotado de câmeras de vídeo que permitem captar imagens frontais e verticais das tubulações, ou seja, inspecionar o interior dos dutos longitudinal e verticalmente (visualização das paredes). Adicionalmente, o robô conta com controle à distância, que possibilita supervisionar o seu percurso, além de visualizar as imagens captadas e um sistema de recuperação manual – um cabo e carretel para a extração em caso de truncamento.
O projeto inicialmente surgiu no Centro de Empreendedorismo e Incubação da Universidade Federal do Goiás (UFG) e atende às necessidades de empresas de diversos segmentos na manutenção de serviços de abastecimento, escoamento e tratamento hídrico, além de contribuir para evitar o desperdício de água.
Já uma solução para o controle de consumo são os banheiros sustentáveis, que utilizam técnicas de reuso de água, visando à redução do consumo. Um desses sistemas é oferecido em São Paulo, planejado para a redução do consumo em casas, edifícios e hotéis. A tecnologia consiste em um conjunto de tubulações que permitem a distribuição das águas residuais do chuveiro e do lavatório (pias) para uma cisterna, que pode ser controlada à distância, e a água nela contida serve para os diferentes usos no banheiro, incluindo a descarga do vaso sanitário.
Diante do que foi exposto, o Semiárido brasileiro experimenta historicamente recorrentes episódios de escassez hídrica e, nos últimos anos, esses episódios têm acontecido também em regiões metropolitanas. Devido aos impactos socioeconômicos e ambientais, existe uma preocupação por parte da sociedade pelo aumento na frequência e intensidade desses eventos. Nesse contexto, algumas tecnologias apresentam-se como uma solução para a redução do risco de ocorrência de tais episódios. O texto ao apresentar casos do Nordeste e em regiões metropolitanas, permite identificar como o uso da tecnologia pode ser empregado para mitigar os problemas enfrentados nessas regiões.
[1] Os componentes de um sistema de abastecimento de água convencional, em sequência, são: manancial, captação, estação elevatória, adutora, estação de tratamento de água, reservatório e rede de distribuição. Concepção de Sistemas de Abastecimento de água. Em: Abastecimento de água. Tsutiya, M.T.,DEHS-EPUSP, São Paulo, 2006.
[2] Análise da efetividade do Água para Todos: avaliação de mérito do programa quanto à eficácia, à eficiência e à sustentabilidade, Fundação Getúlio Vargas, FGV DAPP, Rio de Janeiro, 2018.
[3] Uma mistura de gases de metano, gases carbônicos, hidrogênio, oxigênio e outros, que pode ser usado para a geração de energia elétrica.
[4]Inclui as perdas por faturamento, produzidas por erros de medição, de leitura, ligações clandestinas, entre outras.
Fonte: IPEA