Postado em 9 de março de 2022 por sn-admin
Após décadas de crises socioculturais e econômicas em todo o mundo, a comunidade arquitetônica percebeu que é hora de “projetar como se ela se importasse”. E com isso, abraçou um movimento que viu arquitetos e designers usarem suas habilidades a fim de desenvolver soluções para crises humanitárias, desde a construção de habitações modulares e mapeamento de paisagens, até o desenvolvimento de aplicativos ou documentários, tudo de um ponto de vista altruísta. Mas, já que, o trabalho pro bono ainda não está enraizado no ethos da arquitetura, como os arquitetos romperam com o modelo tradicional de arquitetura “corporativa” e estabeleceram uma forma de garantir a responsabilidade ética pelo bem-estar humano?
Um dos maiores desafios humanitários que o mundo enfrenta hoje é fornecer abrigo permanente para toda a humanidade. Para os refugiados, ser despejado de sua casa automaticamente instiga a preocupação de encontrar um abrigo seguro e estável para descansar, comer e dormir. Infelizmente, muitos se encontram dormindo em barracas, estacionamentos, prédios abandonados ou no chão de seus parentes se tiverem sorte, e mesmo assim ainda não estão seguros. Em 2016, confrontos entre a polícia e os migrantes ocorreram na cidade francesa de Calais depois que as autoridades desmantelaram partes do campo de refugiados conhecido como Jungle, demolindo as casas de 200 pessoas que ali viviam, deixando-os deslocados mais uma vez, porém agora por seu próprio governo anfitrião. Aqueles que não estão desabrigados por causa da guerra, se encontram deslocados e sem abrigo permanente devido a esquemas de moradia superfaturados e condições de vida injustas.
A deficiência dos governos criou oportunidades para os arquitetos alcançarem soluções impactantes. Anos de formação arquitetônica, juntamente com a mentalidade antropológica e estratégias de design thinking, criaram abordagens inovadoras que atendem às necessidades da comunidade e respondem a contextos culturais e econômicos específicos.
Por décadas, indivíduos e organizações vêm se esforçando para melhorar o bem-estar humano, seja nas áreas de educação, saúde ou de direitos. Escritórios de arquitetura, pequenos ou bem estabelecidos, encontraram maneiras de contribuir com a comunidade por meio do ambiente construído, seja erguendo escolas e alojamentos a partir do zero ou auxiliando na reforma dos existentes, pro bono. Depois que um incêndio destruiu partes da estrutura do alojamento Lakota na Grande Los Angeles, Perkins+Will construiu um refeitório de 836 metros quadrados e 36 cabines gratuitamente com o objetivo de apoiar a missão das Girl Scouts de empoderar meninas e mulheres jovens. Skid Row Housing Trust construiu três prédios de apartamentos que oferecem moradia permanente para pessoas desabrigadas. O OMA projetou o plano mestre do International Research Centre for Art and Economic Inequality, um museu em uma antiga plantação de óleo de palma no Congo. Neste caso, os moradores são capazes de gerar renda vendendo arte feita localmente para compradores internacionais e, em seguida, comprando de volta as plantações, antes propriedades de corporações internacionais, para transformá-las em locais de agricultura ecológica. O projeto “apoia uma economia de arte mais igualitária, onde o valor produzido por trabalhadores congoleses é retido na comunidade, em vez de ser canalizado por corporações internacionais para um mercado além do alcance dos trabalhadores locais”.
Em 2010, o Instituto Americano de Arquitetos (AIA) publicou “diretrizes” para trabalho pro bono a fim de sistematizar o processo e, um ano depois, fez uma parceria com o movimento de impacto social Public Architecture para promovê-lo ainda mais nos escritórios. Este último estabeleceu um programa que fornece o conhecimento necessário para usar o projeto do ambiente construído como uma ferramenta para o “bem público”, atuando como um matchmaker entre organizações sem fins lucrativos e práticas de projeto pro bono.
Para refletir ainda mais sobre o tema da arquitetura e seu impacto no setor social, organizações, fundações e escritórios reuniram iniciativas que apresentam soluções e inspiram ações, como o “Design Thinking for the Social Sector” da IDEO e o Change By Design. Architectures of Displacement reuniu especialistas em deslocamento forçado, arqueologia e arquitetura para avaliar a experiência geral e as condições de vida dos abrigos no Oriente Médio e na Europa. O projeto se concentrou em quatro objetivos principais: registrar e categorizar as diferentes acomodações de emergência da migração forçada, avaliar o impacto sociocultural e legal desses abrigos, produzir imagens detalhadas por meio de ensaios e filmes e apresentar políticas e projetos bem-sucedidos de abrigos de emergência por meio de discussões com agências humanitárias e governamentais.
Em termos de processos legais e políticos, a Forensic Architecture foi fundada para investigar casos de violações de direitos humanos ou corporativos e demolições ambientais em todo o mundo, e apresentá-los como casos de estudo para projetos futuros. Usando modelos digitais e físicos, animação, cartografia e RV, a equipe usa a mídia gerada para localizar, analisar e potencialmente reconstruir áreas que foram sujeitas a eventos violentos. Como resposta à crise global de refugiados, o Museu de Arte Moderna realizou uma exposição intitulada “Insecurities: Tracing Displacement and Shelter em 2016, que mostra soluções reunidas por organizações e empresas de arquitetura. Um dos projetos em exibição foi o Better Shelter, uma colaboração entre a IKEA e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que fornece abrigos modulares feitos de uma estrutura ajustável e lonas para campos de refugiados na África, Europa, Ásia e Oriente Médio.
Outros planos de ação se concentraram em reunir pessoas por meio de palestras para discutir ideias e soluções inovadoras sobre o papel da arquitetura na concepção de um futuro mais sustentável, como no quarto evento Architects Beyond Architecture do RIBA + VitrA, que contou com a participação de quatro especialistas premiados que analisaram a arquitetura além de suas fronteiras tradicionais para desenvolver projetos socialmente orientados. Os palestrantes incluíram o indicado ao Emmy Mark E Breeze, arquiteto que virou cineasta conhecido por seu longa Shelter without Shelter, que em breve será lançado, um documentário de seis partes que investiga como os migrantes forçados da Síria foram abrigados na Europa e no Oriente Médio; Kishan San, pesquisador de arquitetura da Forensic Architecture; Lindsay Bremner, arquiteta que se concentra na pesquisa “humanos mais do que emaranhados humanos”, e Chris Hildrey, arquiteto premiado e criador do ProxyAddress, iniciativa que aborda problemas sistêmicos enfrentados por indivíduos desabrigados.
A questão de como construir uma arquitetura “boa”, mas eficaz, permanece. Embora “arquitetos de interesse público” tenham ultrapassado os limites da disciplina e adotado um novo conjunto de responsabilidades trabalhando não apenas como arquitetos, mas como formuladores de políticas e planejadores que criam um “efeito cascata” dentro da comunidade, seu impacto ainda não é extenso. Muitos justificam a ausência de projetos pro bono pela falta de financiamento de comitês ou sindicatos de arquitetura. Outros explicam que a arquitetura é uma prática que exige vários fatores externos, notadamente o material de construção. Portanto, embora os serviços possam ser fornecidos sem compensação, a construção real do projeto é onde o financiamento é necessário, especialmente se for uma empresa pequena ou recém-criada. E com isso, a realidade da arquitetura permanece ambígua; os arquitetos perderam o contato com aqueles que mais se beneficiam com o que eles têm a oferecer ou priorizaram a aprovação de seus precedentes em detrimento do atendimento à comunidade?
Fonte: Archdaily