Postado em 15 de outubro de 2024 por sn-admin
O que faz a cidade ser tão diferente? A resposta está na alta densidade e uso misto, com grande presença de pequenos comércios junto às calçadas
Por Paulo Giacomelli, Diretor de Formação do Instituto de Estudos Empresariais (IEE)
Recentemente, pude finalmente conhecer Buenos Aires, que, apesar da relativa proximidade com a cidade onde moro, Porto Alegre, infelizmente ainda não havia visitado. Como praticamente toda pessoa que vai à capital argentina pela primeira vez, me apaixonei. A sensação, para quem está acostumado com a desordem urbana brasileira, nossa insegurança e ausência de vitalidade pelas ruas, é de que estamos em uma capital de país de primeiro mundo. Particularmente, algo que me conquistou na cidade é a predominância da estética clássica de suas construções, ainda em amplo uso, seja para fins comerciais ou residenciais, mas não pretendo explorar esse elemento com tanto afinco neste texto, apesar de acreditar que grande parte da atratividade de Buenos Aires venha exatamente disso.
Dito isto, o que mais faz de Buenos Aires uma cidade tão diferente? Duas condições: alta densidade e uso misto, com grande presença de pequenos comércios junto às calçadas. Sobre o primeiro ponto, a cidade portenha é a mais densamente povoada, isto é, com o maior número de habitantes por quilômetro quadrado de todo o continente americano (mais de 14.300 hab./km²). Essa característica faz com que a cidade ganhe eficiência de diferentes formas, com menos gastos públicos para implementação e manutenção de infraestruturas; maior facilidade de se preservar a segurança pública, com agilidade de resposta pela menor distancia a ser percorrida; além de um aumento da eficiência energética dos edifícios, que, por serem colados uns aos outros, têm área menor de perda de calor, no inverno, ou de frescor, no verão, assim precisando menos de sistemas de calefação ou ar-condicionado.
Sobre o uso misto, Buenos Aires também é exemplar. Bairros como Centro, Recoleta, Palermo, Retiro e tantos outros têm um equilíbrio imenso entre residências, comércios e usos institucionais. Essa característica, aliada da alta densidade, cria uma enorme gama de oportunidades de lazer, empregabilidade e vitalidade comercial. Sobre esse comércio em si, acho válido dizer que é em grande parte composto por pequenas lojas, restaurantes e mercados, com fachadas e calçadas em escala humana, isto é, com padrão de suas vitrines, ornamentos e entradas proporcionais ao tamanho das pessoas que passam por aquelas ruas. Essa proporcionalidade torna os locais convidativos, harmônicos e com transição suave entre o espaço público e o privado.
Bom, mas, afinal, qual a importância para nós, brasileiros, de entender os fatores que fazem de Buenos Aires esse sucesso? No Brasil, historicamente, em matéria de urbanismo, importamos praticamente todas as inovações que surgiram. Fizemos projetos de renovação e limpeza urbana inspirados na Paris de Haussmann, construímos cidades baseadas no conceito cidade-jardim, no qual se mistura o cenário urbano com o rural, e, logicamente, abraçamos em enorme escala os conceitos modernistas, focados em dispersão e rodoviarismo. Tudo isso foi tentado, mas, aparentemente, o padrão de alta densidade somado ao uso misto encontra, para sua implementação, barreiras culturais, econômicas e políticas que não têm paralelo com os demais modelos que citei. Compreender que não precisamos buscar na Europa ou nos Estados Unidos a solução para grande parte dos problemas das nossas cidades, ainda mais sendo a Argentina um país com tantas crises econômicas mais graves do que as brasileiras, pode ser a chave para entender o que temos de fazer.
Estamos vivendo neste momento um processo eleitoral no qual essa discussão está em voga, como aqui em Porto Alegre, que terá o Plano Diretor pautado em 2025, pelo próximo
prefeito. No entanto, apenas um dos quatro candidatos viáveis à prefeitura local é a favor, por exemplo, de que se eliminem os famigerados recuos de jardim, um dos passos mais importantes para iniciar o processo de densificação e melhoria do potencial de uso dos térreos para o comércio. A razão disso, a meu ver, é a opinião pública bastante resistente a essas mudanças. Pessoas de diferentes faixas etárias e de renda compartilham da opinião de que prédios isolados no lote e com cercamento de ferro são melhores do que aqueles com entrada direta pela calçada, seja por motivo de segurança ou estético. Esse pensamento faz com que as construtoras e incorporadoras não se esforcem para pressionar por alterações na legislação que mantém o atual modelo, impedindo modificações em seus produtos.
Por fim, sei que o caminho sugerido não é fácil, mas defendo ser a resposta para grande parte dos problemas das cidades brasileiras. Falo isso com muita cautela, também, afinal, não são mudanças simples ou que corroboram os estilos de vida de todas as pessoas. Muitos podem preferir o modelo de centro comercial afastado dos bairros residenciais periféricos, e isso não pode ser ignorado. Contudo, não há como negar as vantagens que um projeto de alta densidade, associado à mistura de usos, pode oferecer. Vantagens essas que superam até mesmo as piores condições econômicas possíveis enfrentadas por um país, como hiperinflação e amplo déficit fiscal. Já tentamos de tudo por aqui. Agora poderíamos tentar aplicar esse modelo que deu certo até para os nossos vizinhos argentinos.
Fonte: Exame